Um manifesto salivar – desintoxicando os corpos da dança de salão

Bem- Vindos,

Vou convidar vocês para dançar comigo atualizações de pensamento-dança do artigo “Pela urgência do fim da boa dama – os papéis de gênero na dança de salão”. Ou talvez isso seja uma carta, um manifesto, ou um acendedor de fogueira-pensamento, ou nada disso.

Já de antemão oriento que aqueles que têm estômago fraco ou sua masculinidade fragilizada que preparem o saco de vômito, pois não me responsabilizo por náuseas que vocês podem vir a sentir. Vocês sabem, se leram o artigo indicado, que eu trabalho a partir da experiência do sentir, principalmente de dar voz ao corpo em movimento. Venho há alguns anos convocado algumas mortes dentro do cenário da dança de salão. Obviamente são imagéticas, apesar de hoje possuir um devir assassino de querer matar o presidente. e isso não seria metaforicamente.

Falo e escrevo sempre a partir da minha experiência de mulher cis-gênero, branca, classe média e bissexual, isso me auxilia a localizar meus privilégios nessas hierarquias de credibilidade. Porém, já gostaria de dizer que cada categoria dessas não me limita, e que estou me transformando intensamente, provavelmente, já estarei outra quando nos encontramos virtualmente.

Hoje vou falar sobre o processo de construção da performance La Bruja, que talvez alguns de vocês tenham presenciado no Encontro Contemporâneo de Dança de Salão em São Paulo em novembro de 2019. Essa ação visceral, a qual convoco o meu corpo, têm se desdobrado e tomado parte do meu processo de vida. La Bruja, ou Bruxa, é um vômito, um sintoma do corpo orgânico que desesperadamente coloca via boca tudo aquilo que o corpo não consegue digerir. Intoxicação subjetiva-moral de ser uma “boa” dama-mulher.

Todo o processo artístico dessa performance perpassa por como transformar o meu corpo em algo que atravesse, para além dessa matéria que se move com tamanha fluidez e tem suas artimanhas técnicas para sustentar o olhar de outros enquanto danço. Algo que fissure sensorialmente. Não queria causar isso ou aquilo, mas queria promover o sentir.

Vou até aquela reunião de pessoas que testemunham a minha dança e anúncio que irei vomitar. Passo então a babar, esse gesto surgiu em um dia de experimentação quando tentava me aproximar de instintos animais que poderiam ser criados dentro do meu corpo. Imaginei um animal prestes a atacar outro. Faminto. A saliva surgiu naturalmente, se conectando com o impulso de matar para saciar a fome. A fome, o desejo, aquele instinto que nos faz viver para não sermos mortos. Então a saliva é esse excremento inapropriado assim como o sangue, fluídos que nos conectam com nossa animalidade. O corpo não domesticado. figuras monstruosas não humanas. Tudo aquilo que escapa do corpo asséptico.

[Ação em diálogo com o deslocamento feito pela autora Barbara Creed em sua análise sobre os filmes de terror, onde a mulher não é a vítima, mas o monstruoso em si capaz de desafiar o patriarcado. Leitura que além de desdobrar na performance La Bruja também subsidia e inspira a performance-instalação Malditas em parceria com as artistas Débora Pazetto e Kamilla Hoffmann.]

Diga-se de passagem, que todas as vezes que performei ou que La Bruja existiu em carne em mim, eu estava menstruada, porque também compreendi que ela não aparece porque precisa, mas porque ali, algo está morrendo.

Sim. Eu morro. Partes minhas ali morrem. Viro uma lagarta-cobra ao babar e desfrutar do impulso de desejo que há em mim. Um devorar-se de si. Me masturbo em homenagem a todas as histéricas que habitaram nossa sociedade patriarcal. Toda a angústia, a culpa, o pudor, a depressão dos corpos femininos vazando em matéria. Há um deleite em virar bicha-mostra e ver a Paola-Humana se desfazendo aos olhos dos outros. Essa monstra agora pode caçar. Arrancar a cabeça de seus opressores. É o desejo assassino que emana.

Percebi que educar as mulheres a serem boas damas é enquadrar seus corpos em uma lógica de que precisam se comportar, e necessitam serem salvas sempre pela figura masculina, oh pai, oh marido, oh parceiro de dança…. Você pode dançar sensual, mas cuidado com que veste nas ruas. Você pode transar, mas cuidado, se dê o respeito, se não vai ganhar fama de galinha. Valorize aqueles homens que te tratam com respeito. Ah como é bom ter um parceiro que me protege. Por aí vai um monte de absurdos que vai sendo injetados em nossos corpos, assim como os agrotóxicos que lançam de maneira autorizada sobre os alimentos que consumimos.

Tudo isso vai calcificando uma dependência subjetiva como se precisamos deles. Esse estado vai te paralisando, o medo congela o corpo. Isso nos torna presa fácil. Quanto mais na minha andava pelas ruas, mais recebia olhares invasivos de homens nas ruas. Quanto mais gentil e calada eu fosse, mais abusada eu era. A dama é esse objeto de desejo que precisa ser gentilmente cuidado. Isso também carrega uma sombra que é o fato dessa mulher ser coisa, e com isso se pode fazer o que se quiser. Afinal há sempre um dono homem por aí, mesmo que nem a conheça, os instintos masculinos falam mais forte. Foda-se se ela está bêbada, se ela é uma criança, se ela nem me conhece, todas elas estão abaixo de mim o ser homem-cavalheiro-soberano.

Paola, por favor, sim é verdade que isso acontece muito. Mas, veja bem somos todos homens que estamos nos desconstruindo diariamente. Estamos aqui em busca de práticas mais plurais de dançar.

Verdade. Estamos todos aqui buscando caminhos, mas te pergunto porque você homem insiste tanto em falar, porque você fura a fila de inscrição na frente das mulheres, porque você pega a palavra sempre, sempre, sempre,… Difícil assumir o lugar de só escutar né. Chato ter que lidar com seu lado escroto. Assumir que você tá, vira e mexe, se agarrando no seu privilégio de ter sempre a palavra. Então, companheiros, para educarmos corpos para uma dança onde a desigualdade entre os gêneros desapareça não basta apenas darmos liberdade e emancipação para as mulheres. Tratasse também de ensinarmos aos homens que vocês vão ter que perder poder. É necessário perder parceiros.

Nesse sentido, provoco meus companheiros de diálogo a repensarem seus textos e falas. Eu pouco li textos testemunhos de homens dizendo o quanto se responsabilizam por ações machistas, só vejo discursos de afirmação dos novos “feministos”. Não vejo vulnerabilidade sendo trazido em relatos, o quanto o sistema de condução oprime os corpos masculinos. Porém vejo muitos textos de autores homens discutindo sobre os conceitos e as abordagens na dança de salão na contemporaneidade, todos querendo assegurar qual é o jeito mais adequado. Todos ainda muito centrados no pensamento racional, não vejo nenhum texto mundano vindo dessas figuras. A lógica de pensar e colocar as ideias ainda permanece sendo pautada por uma escritura do homem racional.

Fartas estamos, não sou só eu. Exercitem mais suas escutas e tentem não trazer o pensamento de cara. Quem sabe seja a hora de vocês se conectarem com emoções ao invés das reflexões, vivam o espaço íntimo. Chamem a sombra para dançar, sejam conduzidos vocês pelo cavalheiro que há em cada um. Depois exercitem criativamente possibilidades de desintoxicação, descongelamento de armaduras, de esvaziamentos para que assim outras coisas possam surgir.

Deixem o espaço público, nesse primeiro momento, para ser ocupado por corpos que sabem muito bem o que é vivenciar o silêncio. Talvez seja isso que estejamos precisando, por hora.

Manas, eai onde estão as monstras? O que vocês precisam babar? Convido-as para separar um momento do seu dia hoje e experimentarem esse exercício. Precisa ter coragem, mas garanto que no final pode ser interessante. Se posicione de um jeito confortável, feche os olhos, assegure que sua roupa não está pressionando a sua barriga. Respire e expire profundamente. Pense em todas as situações de opressão que você vivenciou na dança de salão-vida. A cada memória amarga vá produzindo e acumulando saliva dentro da boca. Quando estiver pronta, relaxe a mandíbula e se permita escorrer. Deixe esse líquido cair, pode ser que ele deslize sobre seu corpo ou cai direto no chão. Não se importe com nada, apenas sinta. Se permita. Babe o quanto achar necessário. Depois se sentir vontade em um ímpeto dance aquilo que vier desse encontro. Viva a experiência selvagem de se conectar com um fluído não domesticado sendo cuspido para fora, algo seu. Um protesto salivar.

Caso você seja trans ou tenha uma experiência desviante da heteronormatividade você pode experimentar ambos os processos ou ainda te sugiro que você possa inventar outros. Se criar algo, compartilha com a gente porque estamos sempre precisando vivenciar oportunidades de desterritorializar a cisheteronormatividade diariamente.

Nossa Paola, mas o que isso tem a ver com dança de salão. Primeiro porque quero e meu desejo é o guia desses textos.  Então eu sempre pesquisei a dança de salão como caminho de investigação artística, então sim, o processo como componho perpassa princípios que desenvolvi a partir da prática de dança a dois. Sejam por princípios práticos como a improvisação durante a ação ou o olhar para os parceires de cena como iguais e influenciadores do meu mover sejam eles objetos ou pessoas. Ou pelo contexto que dispara a construção performática, como é o caso dessa ação que quer vomitar a dama. Foi essa prática que domesticou de maneira eficiente a minha performance de feminilidade.  No fim das contas o que percebi depois desses anos é que essa mulher-dama está-estava incrustada em várias esferas da minha vida. Então há esse exercício de reinvenção de si nesse processo. Lembrando que a performance enquanto campo de ação é diretamente conectada e influenciada por processos educacionais, sociais e artísticos. Então ser e estar também é fazer arte, porque arte e vida é uma coisa só. Eu que escrevo aqui, babo na performance, sou professora de dança de salão, transo, como, adoeço, danço, e é o mesmo corpo em todas as ações.

Por fim, eu acredito ser meu papel de artista e facilitadora de dança de salão convocar delírios e a imaginação para compor outros cenários para essa dança. A minha experiência não permite doses homeopáticas de reinvenção, ainda mais quando estou falando com pessoas comprometidas em formar praticantes nessa área. Para mim, a dança de salão, ou quem sabe a dança des-salão, uma dança de ação contrária que quer sair dos salões colonizados e ocupar outros espaços, quem sabe a rua.

[Delírio faiscante que surgiu depois da provocação da Nadiana ao trazer a questão colonial dessa prática, na conversa do grupo que tem se encontrado semanalmente para pensar as abordagens contemporâneas na dança de salão]

Esse movimento só pode acontecer se for convocado por uma multidão de monstras. Quando convocarmos as bruxas, os piratas, as putas, as possuídas, as histéricas, as bichas,…………… e tudo aquile que for desviante para ocupar a pista de dança. Caso contrário seremos novamente lançados a territórios estigmatizados.

Então, para mim a dança de salão e pode ser implodida e reinventada quantas vezes desejarmos e tivermos coragem de faze-la. Alguém aí disposto a dançar?

 

 

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Parceiro, esse texto é para você!

Hoje vou escrever especificamente para os homens que tem trabalhado nas abordagens contemporâneas de dança de salão. Vocês constituem uma parte importante da nossa articulação enquanto movimento, porque ainda vivemos em uma sociedade patriarcal e, muitas vezes, suas vozes acabam sendo legitimadas antes das nossas (infelizmente). Suas práticas-falas podem acessar espaços, os quais nós mulheres não acessamos, porque temos experiências diferentes. Então é por isso que eu te peço companheiro, leia com atenção e corpo aberto, porque te quero perto. Então venho convocar sua ajuda, porque o machismo não está só na condução e nos modos como dançamos. Estamos diariamente passando por situações onde facilmente somos captados a reproduzir padrões, por vezes sutis, de ficar reiterando privilégios e oprimindo os corpos daqueles que já são oprimidos.

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Essa cara sorridente é para te convidar a ler até o final, tá! (Foto Luiz Felipe Ferreira)

Então professor/dançarino/parceiro mudar a sua dança é um dos processos de investigação de reconfigurar sua experiência subjetiva enquanto homem.  Contudo, isso não é o bastante. Vou falar o que virá na sequência porque de fato não quero excluir vocês desses processos, mas fica muito evidente o quanto as parcerias entre homens e mulheres na dança de salão ainda precisam ser investigadas. Aqui eu vou trazer bastante o contexto profissional, porque tô IRRITADA de ficar sozinha argumentando coisas básicas contra um sistema todo. Fatos esses que não se fazem presentes nas parcerias entre mulheres, nossas questões são outras, por isso o meu direcionamento a vocês. Talvez se eu conseguir a ajuda de vocês as coisas possam se ampliar, e as nossas práticas em dança possam ser potencializada. Assim como tenho certeza que suas parceiras se sentiram muito mais legitimadas, respeitadas e acolhidas.

Então, gato, por mais que sua intenção seja a melhor possível estamos nesse jogo há anos em posições desiguais. Isso pode ter diversas nuances e variações ao longo da vida e da experiência de cada um, fatores como raça, classe também serão determinadas, porém não há como negar os privilégios que a condição homem instaura. Sem discussão nesse ponto. O machismo é tóxico para a experiência de ser homem, sim. Contudo, não há como negar que você tem acessos diferentes socialmente do que nós MULHERES. Então eu queria trazer pequenas ações anti-machismo que podem auxiliar nesse processo de investigação:

Reconheça seus privilégios. Aceite que você vive e foi criado dentro de uma estrutura machista. Então você pode não estar ileso de cometer uma ação machista. Lembrando que silenciar-se diante de uma a ação machista de uma pessoa ou instituição é reiterar o machismo.

Escute sempre um retorno crítico da sua parceira de dança. Não se defenda de imediato, pense e acolha aquelas palavras antes de tomar qualquer atitude defensiva. Muito provável ela te trará uma experiência que você não percebe, porque quando temos privilégios dificilmente percebemos que os temos.

– Apoie sua parceira quando ela aponta alguma atitude machista seja em aula ou contra alguma instituição. Não se coloque como desimplicado. Assegure que você está ao lado dela.

– Pergunte sobre como tem sido suas ações e falas para com suas parceiras, principalmente, crie um campo aberto para o diálogo. Há ainda uma cultura muito enraizada de silenciamento nas nossas experiências enquanto mulheres, então, muitas vezes podemos não estar conseguindo comunicar os nossos incômodos.

Confira as divulgações realizadas quando vocês forem ministrar aulas, veja se consta o nome de sua parceira. Reclame quando não estiver o nome dela, ou ainda quando colocarem o seu nome antes sem seguir a lógica alfabética. Se ela for tratada pela instituição sem o mesmo rigor que você, não permita.

– Não permita a cultura de se referirem a sua parceira como “Parceira de Fulano”. Enfatize que ela tem um nome próprio.

– Abra espaço e valorize que as mulheres tenham o mesmo tempo de fala em aula.

– Não faça nenhum tipo de “piada” constrangedora em aula, principalmente com algum grupo que já oprimido e não permita esse tipo de situação na sua presença.

– Valorize os saberes das professoras mulheres nessa área, não assuma os elogios sozinho desse trabalho. Saiba que esse movimento é pautado por muitas mulheres, e alguns homens também, então não se esqueça de trazer essas referências para aula. Perceba se você ao citar suas referências se elas não estão pautadas somente nos homens.

– Leia os textos já publicados por professoras mulheres, e ao citar pensamentos e inspirações em aula ou postagens referencie os nomes dessas pessoas.

Encerro esse relato dizendo que isso é um pouquinho do que podemos repensar juntos. Devem ter outras sugestões maravilhosas vou pedir para as Manas da dança de salão olharem o texto e irem acrescentando. Porque nesse texto rápido não consigo abarcar todas as possibilidades de experiências presentes

Porém, queria chamar para pensar vocês colegas homens que vem comigo trabalhando e pensando sobre as abordagens contemporâneas na dança de salão para se comprometerem nessa investigação. Vou usar uma citação incrível da filósofa Djamila Ribeiro, que muito tem me convocado a repensar a minha branquitude (porque sim querides todos nós precisamos investigar constantemente a nossas experiências de estarmos vivos, inclusive eu). No caso ela está falando de racismo mas também podem pensar em relação ao machismo.

“Não se trata de se sentir culpado por ser branco: a questão é se responsabilizar. Diferente da culpa, que leva à inércia, a responsabilidade leva à ação.” (2019, p. 36)*

Então não se trata de se sentir culpado por nada e sim de agir, assumir os erros quando ocorrerem e se responsabilizar por desnaturalizar olhar condicionado pelo machismo e pelo racismo e criar espaços e lugares para que mulheres e negros consigam acessar. Bora rapazes se responsabilizarem e se implicarem com esse chamado!

 

Obs: Já termino falando que enquanto movimento de Dança de Salão Contemporânea precisamos urgentemente trazer o debate da raça e da classe para as nossas discussões, inclusive das minhas 😉

Obrigada Carolina Polezi, pela leitura amiga e incentivadora desse texto!

*Referência: O Pequeno Manual Antiracista, Djamila Ribeiro, São Paulo, Companhia das Letras, 2019

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Por que uma Aula-Baile de dança de salão contemporânea na vida da Paola?

Como seria criar um ambiente onde se pudesse aprender dança de salão, mas partindo do pressuposto da conexão consigo e com o outro? Um lugar onde as condutas controladoras que regem nossos corpos fossem dissolvidas e pudéssemos experimentar outros estados de estar em relação.

O que tu quer dizer com isso, Paola?

Aula-Baile de Dança de Salão Contemporânea

Foto de Luiz Felipe Ferreira da Aula-Baile de Dança de Salão Contemporânea.

Vou tentar explicar um pouco o caminho que percorri na dança. Assim, talvez você que está comigo nesse momento consiga entender o porquê a aula-baile de dança de salão contemporânea é algo que faz tanto sentido hoje na minha vida . Eu comecei a fazer dança de salão quando tinha 14 anos, e desde então nunca mais consegui parar. É incrível estar em contato com o corpo do outro, se comunicando através da dança, improvisando juntos, ir descobrindo caminhos a dançar jamais imaginados. Uma dança a dois, só funciona quando alguma conexão entre a dupla se instaura.

Esse é a parte potente, e que de fato torna a dança de salão uma prática muito especial. Porém a maneira como ela tem sido ensinada-pensada-praticada a partir de um sistema de condução pautado em dois papéis (condutor-conduzida) traz uma série de enrijecimentos nos nossos corpos. Vamos entender corpo como tudo aquilo que envolve o processo de estar vivo e em relação com o mundo. Então é muito mais do que uma estrutura material, corpo anatômico, mas nossa sensibilidade, os pensamentos, as percepções, entre outras coisas.

Esses papéis na dança têm muito a ver com os estados bem limitados que compreendemos do que é ser homem e mulher. Por exemplo, cavalheiros condutores são seres que planejam a dançam, racionais e fortes. Damas são sensíveis, se conectam com suas emoções e são delicadas. Só que o problema desses papéis é que eles não consideram as inúmeras variações que existem em cada pessoa viva, e inclusive geram uma pressão para que nós  mulheres e homens tenhamos que nos adaptar a eles.

Eai galera, que comecei a sentir na pele uma ausência de desejo de seguir frequentando os espaços da dança de salão. Eu como mulher deveria ser conduzida. Esse papel que me cabia na dança é algo extremamente prazeroso, desenvolver minha sensibilidade para aceitar as proposições do outro. Só que ele começou a me limitar. Precisava que um homem me tirasse para dançar e se isso não acontecia eu acabava não dançando todas as músicas que queria. Quando dava aula com parceiros homens, eles sempre acabavam falando mais, tendo mais espaço para explicarem os movimentos.

 

Eu sei que existe uma esfera onde precisei ir ganhando confiança na minha capacidade enquanto professora e dançarina nessa área. Só que tudo isso fica muito (mas muitoooo) mais difícil quando há um sistema inteiro reforçando e reiterando a figura masculina. Os homens são mais capazes, os que devem ser mencionados nas divulgações, os que de fato tem o “conhecimento” da dança, ou seja, a condução. Sem contar as situações de assédio que já passei, por exemplo, quando um parceiro passou a mão em meu peito durante a dança intencionalmente. “Brincadeiras” foi a resposta que me deram quando fui reclamar na época para o diretor da companhia que dançava.

São inúmeras situações de violência e controle que passamos nessa prática como ela está instaurada. Mesmo depois de já estar há anos nesse exercício de me colocar como professora e dançarina independente de alguma figura masculina, facilmente sou chipada com algum parceiro que estou dançando na época. Não sou mais a Paola e sim a parceira de fulano.

Então, depois de anos vivenciando essas experiências passei a não sair mais para dançar. Não tinha percebido que não estava mais tendo prazer em dançar socialmente, e que a dança tinha passado a ser apenas um lugar de investigação. Isso foi incrível por um lado, porque nunca desisti da dança de salão, insisti, segui experimentando e acreditando que era possível fazer algo diferente. No início era bem solitário esse caminho, eu tinha um excelente parceiro que me possibilitava em sala de ensaio testar várias coisas, mas ele não tinha as mesmas angústias que eu. Não teria como ter, nossos lugares promoviam vivências diferentes.

Eai vem 2016, eita ano borbulhante, conheci a Carol (Polezi citada em vários textos aqui do blog) ela me disse que o que eu tinha escrito era muito importante, e que ela estava querendo pensar diferente assim como eu. Esse encontro me fez ver que era possível. Eu precisava encontrar outras mulheres, precisava assumir cada vez mais esse caminho, não tinha mais volta. Foi quando percebei que precisava chamar minhas colegas de Porto Alegre para conversar sobre ser mulher na dança de salão. Tudo começou a tomar uma proporção de vida tão grande, que me senti convocada a mediar esses processos e seguir provocando conversas sobre a dança de salão. Aí veio muitas outras mulheres que me inspiram Ilana, Laura, Anna, Fernanda, Kelly, Diana, Debora, Lidiane, Brigitte, Tati,… todas nós querendo repensar o que estava acontecendo nessa prática. Todas nós tínhamos histórias parecidas, por vezes, havíamos desconfiado do nosso próprio potencial. Juntas compreendemos que éramos mais fortes e que caminhos outros para essa prática já eram possíveis.

Bom chegamos então na nossa aula-baile de dança de salão contemporânea. É nesse espaço que hoje em parceria com a Brigitte depositamos os nossos desejos por uma dança de salão que possibilite experiências libertadoras. Uma dança que nos viabilize acessar a nossa sensibilidade, a abertura para o outro, nos permita ser vária-o-i-u-s.

O importante desse espaço é perceber que aprender a dançar pode ser prazeroso, e que para isso eu não preciso ser um papel ou outro. Passamos a nos conectar com as potências de cada corpo, a partir disso ir se comunicando ao mover. Também posso nesse espaço ser desafiado ao desconhecido, provando texturas que não imaginava serem possíveis. Aqui, eu posso estar aberto ao outro, pois primeiramente estou aberta a escutar o meu próprio corpo e a partir disso sensivelmente ir percebendo o mundo ao meu redor de uma maneira diferente.

 

 

É isso a aula-baile, um espaço de encontros. Chegamos percebemos como estamos, e vamos tecendo os passos de dança, brincando de dançar, jogando com os outros. Aceitando e acolhendo os outres e sentindo o dançar acontecer. Juntos. Dançamos e percebemos como é linda essa experiência de conexão com o desconhecido. Depois de vivenciar encontros como a aula-baile e mais um tanto de coisa que essa mulherada tem feito na dança de salão eu descobri que amo sair para dançar.

Percebi que me divirto dançando e que sentia muita falta disso. Amo sair para dançar hoje em dia novamente. Tô felizona com que está acontecendo!

Eu espero que vocês que me leram também possam sentir prazer dançando. Se por acaso pararam de dançar, pensem um pouquinho do porquê isso aconteceu. Quem sabe seja a hora de experimentar outras formas dessa dança de salão?

Quem quiser arriscar um dois para lá dois para cá comigo, chega junto no Espaço Mova, quinzenalmente, aqui no Rio de Janeiro. Seria lindo dançar-conversar!

 

Pensamento-dança os quais ecoam hoje sobre Condução Compartilhada

Oficina Dança de Salão Queer

Vivência de Dança de Salão Queer na Semana da Diversidade Sexual e de na FABICO. Foto: Yamini Benites.

Ontem estava participando de um evento sobre condução compartilhada no forró. Confesso que fico extremamente feliz e grata por estar podendo vivenciar essas ações no espaço da dança de salão. São anos pesquisando, investigando e propondo ações para reinventar essa prática, e perceber que há um movimento acontecendo, é algo que me deixa muito feliz. Essas ações não estão ocorrendo apenas nos espaços (in)visíveis, pensando na atuação das mulheres que normalmente acabam sendo invisibilizadas pela dança de salão majoritariamente masculina. A condução compartilhada pode ser tema de um evento de forró, as discussões sobre gênero são um dado material que atravessa os corpos que dançam.  Já que é necessário que se dialogue com as temáticas do nosso tempo, a dança de salão precisa acompanhar os fluxos da contemporaneidade.

Eu sempre me lembro o quanto me sentia sozinha quando comecei a trazer essas pautas para os espaços que frequentava, hoje me sinto acolhida por muitas outras colegas, e juntas somos mais fortes. Assim me sinto responsável e implicada a germinar faíscas de coragem para que outras mulheres possam desdobrar suas práticas a partir de um olhar crítico. Então é lindo ver como ontem os olhares de muitas mulheres brilhavam com as novas possibilidades de inserção e de poder vivenciar essa prática sem ter que se ajustar a uma ideal de dama inalcançável. Assim como vejo os ombros de muitos homens relaxando ao descobrirem que ainda que timidamente é possível acessar um corpo sensível, delicado e sutil. A dança enquanto função social, redescobrindo outras formas de estar em relação, buscando momentos de equidade e pluralidade. Muito bonito mesmo ver esses encontros.

Porém, algo como profissional me desperta uma luzinha de alerta. (Já aviso que não quero parecer possessiva em relação a essa temática porque acredito mesmo que essas práticas precisam ser disseminadas e possuir abordagens plurais)

Ontem ouvindo as aulas dos outros professora/es pensei que talvez ainda haja uma certa confusão no que se refere essa noção de condução compartilhada, e principalmente porque ela surge. A abordagem de condução compartilhada na dança de salão, é uma proposta prática que parte de implicações políticas muito precisas. Quando ouvi esse termo pela primeira vez foi a partir das provocações da professora Carolina Polezi de Campinas. Na época em 2016, percebi que a proposta da Carol dialogava com as implicações que eu também estava desenvolvendo ao pensar uma Dança de Salão Queer, as quais tinha duas provocações muito precisas: os papéis de gênero na dança de salão e a heterossexualidade como norma.

Essas duas pautas são decisivas para compreendermos porque se instaura essa proposta prática na dança de salão, porque ela é uma tentativa de subverter esses dois pontos. Então, sim a condução compartilhada é uma proposição para além do forró, porém ela não é apenas uma linguagem a mais na dança de salão. Ela não é uma forma dentro de todas as outras formas de dança, ela quer corroer esses padrões que estão colados nessas figuras na dança chamados de cavalheiros-damas. A condução compartilhada não desenvolve seus princípios a partir desses papéis, ela pressupõe a construção de corpos para a dança de salão que não estejam limitados a funções estereotipadas de categorias generalistas, e limitadas, do que é ser homem e mulher na nossa sociedade.

Além disso, ela estimula novas experiências, possibilitando através dessa vivência a exploração de outras formas de se dançar, ao incentivar que mulheres conduzam, homens sejam conduzidos, a buscar movimentos que todos possam ser criativos, a desconstruir essa lógica sensual padronizada na dança, a buscar um cuidado com os corpos. E isso não é algo que se dá espontaneamente, não é algo que ocorra sem que seja estimulado pelos profissionais que estão a frente desse processo.

Condução Compartilhada, então não é uma forma de dança apenas é muito mais do que isso é uma proposta de vida. Esse é um ponto caro para mim e para todas as outras mulheres e corpos que não se identificam com a norma heterossexual. Isso é muito importante para nós, porque infelizmente é nos nossos corpos que o sistema tradicional de condução e de dança de salão com seus papéis deixa as suas marcas, as quais são muitas vezes bastante doloridas. Sim galera, é a partir das experiências de violência que sofremos que essas propostas surgiram. É a partir do silêncio que fomos obrigados a fazer: seja na dança ao ter que apenas seguir; na sala de aula ao não ter espaço de fala porque nossos parceiros homens não permitiam; nos eventos que não divulgavam os nossos nomes; nos bailes em que não fomos tiradas para dançar. Na insegurança que nos foi gerada e no descrédito da nossa competência profissional simplesmente por sermos mulheres. Sem contar nos pontos subjetivos ao sermos massacradas para sermos bonitas, sensuais, gentis, educadas o tempo inteiro. Assim gerando tamanha disfunção que estamos sempre competindo umas com as outras, querendo nos ajustarmos a esses padrões.

Então condução compartilhada é prática de vida, uma vida que pulsa com força e quer romper desesperadamente essas condutas tóxicas e que nos tornam enrijecidos, enfraquecidos e submissos a tudo isso. Infelizmente meninos vocês estão em um outro lugar nesse processo, o que não quer dizer que essa loucura toda não seja enfraquecedora e dolorida aos corpos de vocês. Não há dúvida que isso os atinge também. Porém há uma posição diferente no jogo e necessário reconhecer esse lugar antes de qualquer outro passo.

Assim, minha dica para qualquer professora/es que estejam pensando essas práticas na contemporaneidade. Primeiro é precisam começar a romper inicialmente com os próprios privilégios e categorias dominantes que compõem a sua dança, a sua forma de dar aula, a maneira como se relacionam com o seu parceira/os. A mudança do discurso não é suficiente se a nossa prática seguir sendo hierárquica, se as piadas seguirem constrangendo os corpos nas suas diferenças, se a dança seguir sendo a mesma. Se seu corpo na dança e na vida não mudou ao começar a pensar sobre condução compartilhada, então há algo que precisa ser revisto.

Segundo é preciso conversar e dançar com outras pessoas que estão fazendo isso, esse é um movimento em rede, em coletivo. Escute as outras histórias, principalmente de mulheres, perceba os corpos diferentes e valorize isso.

Terceiro vamos seguir pensando e provocando a discussão, ela não encerra por aqui porque é vida, né galera. Enquanto seguirmos respirando a condução compartilhada segue sendo oxigenada, o processo de reinvenção é diário 😉

Um abraço bem delícia para os que leram até o final!

Roda de Conversa no Congresso Contemporâneo de Dança de Salão em BH. Foto Gilberto Goulart

Eu, Carolina Polezi, Marina Coura, Laura James, Débora Pazetto e Fernanda Conde. Uma mulherada de peso que pensa e vive condução compartilhada! Foto: Gilberto Goulart.

Sobre Drama no Salão, Senhora-Trepadeira e Paola-Inquieta

A Nina, Karenina de Los Santos, me fez um convite em 2015. Ela queria pesquisar dramaturgia nos processos de criação a partir da dança de salão. A pesquisa dela já ocorria nesse sentido na dança contemporânea, e quando ela começou a trabalhar com dança de salão percebeu que pouco ou quase nada era feito nessa área. Isso tudo decorre, a meu ver, muito devido ao fenômeno da dança de salão se dar no âmbito social, ou seja, a experiência da mesma ocorre através dos bailes e festas para se dançar a dois. Embora, nos tempos atuais muitos professores vejam nessa prática uma fonte para desenvolver suas pesquisas cênicas, em muitos casos isso é feito através do desenvolvimento de coreografias que visam apresentar um aperfeiçoamento técnico e servem como demonstrações de movimentos virtuosos. Claro que já é possível citar grupos e dancarinxs que estejam desenvolvendo pesquisas cênicas mais aprofundadas como é o caso do Casa 4 (BA); Grão (SC); Terceira Margem (MG); ou ainda o trabalho de investigação de movimento a partir da linguagem do tango e a improvisação que desenvolvi com o Giovanni Vergo nos últimos anos que resultou em diversas performances e compôs também o espetáculo Corpobolados (2015-2018). Há outras pessoas, com certeza não citei alguém nesse texto, pois já estamos vivendo novos rumos dessa prática. (Vou falar em outro post daqui uns dias sobre a experiência do 2º Encontro de Dança de Salão Contemporânea).

Drama no Salão com Karenina de Los Santos

Foto Stephany Lotus – Eu e a Nina em 2016 mostrando um fragmento da pesquisa na Mostra de Porcessos do Necitra.

Mas vamos voltar aqui para uma questão que me atravessa que é: como pensar na dança de salão como procedimento de criação?

Há meu ver, quando pensamos em um processo de criação não podemos nos limitar em transformar os movimentos que são feitos na prática social e recoloca-los no palco. Nesse processo de copiar e colar do salão de baile para o palco muito se perde, e o que vemos realmente parece não fazer sentido. São processos singulares e que através desse tipo de procedimento perdem características que os tornam especiais, o baile por si só pode ser uma experiência estética incrível, é um espaço coletivo onde coisas ocorrem devido o encontro espontâneo entre pessoas. O ato de criar para a cena é um outro caminho, é preciso pensar no que estaremos enfatizando, pensar em como isso pode vir a atingir aquela pessoa que se disponibiliza estar lá para assistir, ser responsável pelos significados que vão emergir.  Com certeza, poderia falar mais sobre isso, mas quero enfatizar como foi o processo de elaboração do Drama no Salão a partir da minha perspectiva de dançarina colaboradora-criadora desse projeto.

Nesse sentido, penso em quais os princípios que a dança de salão foi me auxiliando a construir nesse corpo dançante ao longo dos anos.  Hoje reconheço uma habilidade de improvisação, uma escuta ao corpo do outro, uma possibilidade de comunicação ao dançar com a outra pessoa que muito foram desenvolvidas através dessa prática. E elas me auxiliam e me fazem dançante através de uma via singular, um corpo que se forma para dançar com o outro. Minha principal formação em dança em tempo e estudo me coloca para estar em relação com o corpo do outro. Isso me constitui enquanto pessoa, e me auxilia em muitas situações da vida, mas também me traz desafios, por exemplo, em alguns momentos de improvisação me perco fácil dos meus impulsos porque quero muito estar com o outro. Facilmente o outro parece mais interessante do que o que eu havia começado a fazer, enfim, questões de dança que PÃÃÃÃ são questões de vida também.

Mas voltamos a Nina, ao Drama no Salão e a esse processo de criação, se é que vocês que me leem ainda estão acompanhando meu devaneio. As minhas pesquisas com a Nina começaram por aí, não queríamos chegar em lugar nenhum num primeiro momento. Queríamos experimentar como nos abraçar de diferentes formas, queríamos jogar com as vestimentas que percorriam nossos imaginários de dança de salão, caminhar juntas pela sala, como era alterar as velocidades dos movimentos que conhecíamos, como era dançar sozinha o que fazíamos juntas…

Experimentamos, dançamos, experimentamos mais um pouco.

Assim aos poucos começamos a perceber a dramaturgia ir chegando, apontando para o que o universo dos bailes de dança de salão nos provocavam, o ato de estar em um baile, o que acontecia nesse lugar. E buuuuuuum, algo começou a ficar muito latente, éramos duas mulheres dançando algo que não está de acordo com as normas desse espaço. Éramos duas mulheres, mulheres que dançam que são independentes que conduzem e são conduzidas, que batem boca quando sofrem situações de opressão nesse espaço. Mas ainda assim éramos duas mulheres que apesar de críticas a esse espaço-tempo dança de salão também já sofreram diversas situações desconfortáveis, que já tiverem seus trabalhos deslegitimados, que já tiveram seus corpos julgados e controlados para serem belos, delicados e sutis, que já foram assediadas e que já não foram tiradas para dançar.

Assim fomos desenvolvendo essa pesquisa pensando nos dramas que atravessavam nossos corpos de mulheres na dança de salão. Chegamos a ir em bailes, queríamos ver como acontecia ainda esses bailes para além dos espaços das escolas de dança que frequentávamos, queríamos ver como eram essas mulheres. Eu lembro que chegamos empolgadas no Baile de domingo à tarde que começava às 15h da tarde, fomos arrumadinhas e passamos até batom nesse dia.

Lá estava aquele salão imenso com gente dançando, na maioria pessoas de idade, definitivamente éramos as mais jovens, havia diversas regras sobre como se portar e dançar naquele lugar. Luzes coloridas piscavam, um tecladista tocando e cantando só clássicos, pessoas rodando e dançando a dois com seus corpos de diferentes formas (nada muito padronizado como nos bailes de escola), e nos ali observando e atentas em ver como as danças ocorriam. Contudo fomos percebendo que o que mais nos chamavam atenção eram algumas mulheres, senhoras, bem arrumadas, que esperavam em suas cadeiras uma oportunidade de dançar. Elas eram um misto de escultura com trepadeira, na minha percepção, estavam apoiadas na cadeira e na parede na espera de algum convite para adentrar no salão que rodava, porém, o convite nunca vinha.

Fomos ficando deprimidas naquele lugar, assim como aquelas que esperavam.

Eu jamais vou me esquecer da senhora trepadeira que parecia fazer parte daquele baile, como se ela sempre estivesse esperando naquele lugar. Eu pensava será que ela já dançou muito anos atrás? Será que ela vem todos os domingos esperar? Será que ela se arruma todos os domingos para vir esperar uma possível dança?

Os olhos dela eram perdidos na imensidão já estavam cansados de buscar….

Eu jamais vou esquecer esse olhar vazio, um vazio de imensidão do ato de esperar.

Amanhã quando entrar para dançar o Drama no Salão, danço por ela, pela sua espera, danço por mim por saber usar da escuta e do ato do esperar como procedimento para criar, e não para paralisar. Sei da minha responsabilidade de artista de estar ali dançando, nesse momento, nesse tempo-político sombrio, por isso me faz muito sentido dançar pela senhora-trepadeira. Assim como ela há muitas de nós sendo silenciadas na dança e na vida, na constante espera de que um convite seja feito.

Eu aceitei o convite da dança de dançar para viver. Mesmo sabendo que sempre, constantemente, querem que eu volte a esperar algo ou alguém. Por isso optei em dançar, sim vou dançar o ato de esperar.

 

Drama no Salão

Dia 22.11.18 às 20h na Sala Álvaro Moreyra, Av. Erico Veríssimo, n º 307

Dia 23.11.18 às 20h no Teatro Hebraica, Rua João Telles nº 508

Quanto: 30,00 (inteira); 15 (classe artística, estudantes e melhor idade)

Karenina e Paola 018

Ficha Técnica

Concepção e direção: Karenina de Los Santos
Criação e interpretação: Karenina de Los Santos e Paola Vasconcelos
Iluminação cênica: Gabriel Martins
Luz cenográfica: Karenina de los Santos
Figurino: Antonio Rabadan
Trilha sonora: Paola Vasconcelos e Karenina de los Santos
Design gráfico: Fernanda Boff
Produção: Karenina de los Santos e Fabrício Sortica
Fotos: Joseane Bertonccello

A morte da tradição, mas não da dança de salão

Quando dançamos temos a possibilidade de criar outras formas de se relacionar com o mundo, com o outro com o seu próprio corpo. A dança a dois pode ser campo político para perceber a potência que os gestos podem ter na nossa existência. Hoje escrevo diferente porque em parte fui atravessada por Ilana, Guilherme, Carol, Carlos, Kelly, Débora, Camila,… Estava lá disponível para acolher o outro, e perceber o que juntxs poderíamos descobrir durante esses encontros dançantes ao longo do final de semana. Respirações que se sincronizam, toques que deslizam, seguram, escorregam e pressionam. Danças emergentes de outro lugar, criação de pequenas ficções a dois. Quando o dançar a dois é pautado pela escuta do outro e o desejo de se estar juntxs outros mundos começam a ser construídos. Através dessas trocas ao dançar, nesses processos de desconstrução, é que podemos tornar uma prática que aparentemente está fixada em estruturas normativas e padrões de gênero em algo que subverta e reinvente outros modos de existir.

Contudo, para que isso possa acontecer, para que eu possa estar ali aberta ao acaso, ao outro e ao encontro, é necessário horizontalizar. Se colocar em movimento, ir ao chão, desapegar, desprender, desequilibrar, desestabilizar, talvez até cair. Horizontalizar a dança de salão, os espaços onde ela existe, as formas de acessar e compartilhar esses saberes, e os modos de dançar.

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Eu e Ilana – Improvisando e descobrindo formas horizontalizadas de dançar juntas

Pensar em uma dança onde a proposição de movimento seja fluída, e onde se tenha como desejo principal uma tentativa de coexistir dançando. Uma dança que seja plural, acolhedora, sob vias de cuidado consigo e com outro, mas que ao mesmo tempo tenha engajamento, fricções e desafios é algo que tem me mobilizado enquanto criadora-educadora de dança de salão. Não é uma tarefa fácil, é exercício diário de desapego do “eu”, do querer fazer a todo tempo, pois é acreditar na possibilidade de um outro eu, algo que é coletivo. Algo que está no cerne do encontro, no entre os corpos e que vai amadurecendo a cada nova dança.

Nesse sentido, destaco a importância do Baile Contemporâneo de Dança de Salão, organizado pela Companhia Dois Rumos de SP, o qual vem tentando articular e potencializar um espaço onde a prática social do baile possa ser horizontalizada. Sinto uma alegria enorme de chegar em um espaço de dança de salão onde haja homens dançando com homens, mulheres com mulheres, propostas de movimento conhecidas da dança de salão e/ou experimentações com outras danças. Tudo em um único espaço, acontecendo sob o mesmo lugar e de maneira fluída. Há mais de um ano a companhia tem desenvolvido essa atividade em São Paulo, e com isso tem articulado um movimento intenso de pessoas interessadas em repensar as formas de dançar a dois.

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Final de Baile da Dois Rumos, junho de 2018.

Tenho que destacar a quadrilha diferentona que rolou, afinal era Arraial e nada mais justo do que ter aquele bom momento de dança coletiva. Além de poder compartilhar olhares e sorrisos com todxs os presentes, a melhor parte era ver o cuidado da organização em reinventar essa forma de dançar. O discurso muda, atualiza e faz englobar a todxs. Vemos ainda um “medo” quando se falam nessas propostas contemporâneas de fazer-pensar dança de salão, como se elas fossem aniquilar uma tradição. Eai a gente vê a quadrilha rolando, sem papéis de gênero definidos, e o principal, que é todo mundo dançar junto, acontecendo em máxima potência. A mudança, o desconhecido pode até gerar um certo receio no primeiro momento, mas não podemos mais continuar insistindo em “tradições” que oprimem e marginalizam. A dança de salão vai continuar existindo, só não precisa ser da maneira normativa que se encontra.

Só não vale manter o tradicional e vir com o slogan que todos podem dançar e ser feliz, porque eu e várias outras pessoas não nos sentimos bem nesse espaço. E não vamos nos retirar porque queremos dançar dança de salão, e já estamos criando e reinventando espaços, redes, danças, encontros para dar vazão a uma dança de salão feminista, LGBTQ+, queer,….

Voltando a horizontalidade, além da Dois Rumos pude conhecer pessoas interessantes que estão sendo protagonistas desse movimento por lá.  A fantástica Ilana Majerowicz que vem buscando pensar em propostas de ensino da dança de salão contemporânea que sejam processos de experiência para além da ideia do compartilhar algo de maneira vertical. O Guilherme Akido que está começando a articular esse processo em Santo André, a Joana de Barros que está iniciando uma pesquisa acadêmica sobre o tema, e mais um monte de gente iluminada que cruzei nesse final de semana. Pude também reencontrar a minha querida amiga e parceria Carolina Polezi. Nossa distância não está impedindo que os nossos improvisos sejam vivos, além é claro das nossas conversas instigadoras que já são uma marca desse encontro.

Ver outras pessoas trilhando caminhos diferentes dentro dessa área me mobiliza, e faz crer que estamos amadurecendo essa rede de compartilhamentos via dança-conversa-reflexão pelo Brasil. Espero que possamos cada vez mais ampliar os espaços, conversas e danças por aí!

Finalizo esse texto me perguntando o que poderíamos fazer para deixar essa prática de dança de salão expandir para outros espaços para além desses lugares e pessoas que já frequentam o universo da dança. Afinal não são todos que tem o privilégio como eu de poder estar pesquisando esse universo. Como podemos estar sempre trabalhando esse processo de horizontalidade nas nossas danças? Como criar propostas artísticas-educadoras sob esse princípio? Até que ponto estamos dispostos a chegar, será que queremos chegar em algum lugar?

Para quem quiser conferir: Improviso Carolina Polezi e Paola Vasconcelos